Só apontando para a geografia é que posso dizer que o Ferrugem está perdido, pois habita nos arredores campestres de Famalicão. De resto, em mais nada este restaurante se perde. Aponta para um zénite bem definido, conhece bem a gastronomia que quer traçar e orgulha-se daquilo que já percorreu. Nota-se a passagem do tempo na cozinha de Renato Cunha. A experiência ganha encontra-se na tranquilidade com que constrói as degustações que oferece hoje, por contraponto à inovação regional que queria imprimir nos primeiros anos da sua cozinha.
O Ferrugem é uma casa de pé-direito alto, em pedra de granito, decoração contemporânea e aconchego familiar. Tem um serviço elegante e prático de quem oficia na casa há muito e a conhece bem, na pessoa do Sr. Abílio.
O ambiente intimista e confortável do Ferrugem Azeite e Manteiga de ovas de polvo para começar
O menu “Ferrugem” é um hino a Portugal em degustação gastronómica. É também uma demonstração clara de como a cozinha tradicional pode evoluir. Renato joga com os sabores, umas vezes dos alimentos, outras das receitas, transportando-nos para a memória que temos delas num jogo que todo o gastrónomo gosta de jogar com a cozinha.
Começa com uma salada para abrir o apetite, centrada num pingo de mel, queijo de Idanha e ervas, como rúcula e acelgas. Uma deliciosa ratoeira, já que a delicadeza de como o figo foi preservado e a frescura do queijo nos preparam para a refeição, sem nos saturar o palato à primeira proposta.
A sopa de peixe, um caldo denso vertido sobre peixes e mariscos da costa também parece comum, mas a intensidade do caldo e a nobreza das proteínas propostas (Sargo, ameijoa e mexilhão, com apontamentos de hortelã que enchem o ar quando quentes) têm o condão de nos transportar para a tipicidade e elegância num só momento de degustação.
Uma reconfortante tábua de queijos Sopa de peixe
Depois, um robalo braseado e açorda de ovas. Esta, bem puxada e mais complexa e intensa do que costumamos julgar, tem um sabor que parece não querer sair da nossa boca, muito depois de já termos terminado a garfada.
Referência maior da refeição talvez seja o bacalhau confitado em azeite e o puré, ligado com o azeite do confit e com o colagénio do próprio peixe, deu uma elasticidade e sabor invulgares ao puré. Acompanha uma cenoura baby e cebola em pickle que enche a boca de frescura e leveza, complementando o resto da oferta.
Bacalhau e um puré cremoso, simples e complexo ao mesmo tempo O Abade de Priscos na sua quarta versão
A carne responsável pela viagem nacional é um secreto elaborado a baixa temperatura apresentado em forma de flor. A acompanhar, um falso sarrabulho de carolino, escuro, com trombetas da morte a dar textura e a goma do arroz a consistência. Os cominhos intensos unem tudo, numa apresentação que lembra um risotto de sabor bem português.
Tudo isto é Portugal num prato. É aquilo que nos representa. Antes de uma bola de abade de priscos na sua quarta variante, servida numa taça de gelo, veio uma tabua de queijos nacionais e estrangeiros acompanhada das famosas folhas de amêndoa do Ferrugem.
A lista de vinhos é curta, mas abrange Portugal, em coerência com o resto do conceito do restaurante.
Comer no Ferrugem empurra-me para o lado elegante que a nossa cozinha pode ter, sem nada sacrificar. Não inventa, não navega em águas estranhas, privilegia a elegância e a técnica. É disto que precisamos para avançar com a nossa gastronomia no mundo.