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No meu imaginário, as romarias são atividades de peregrinação que se realizam com o intuito de nos aproximarmos do divino e de vivermos uma experiência religiosa profunda.

As romarias costumam ser também geograficamente distantes da nossa terra e muito frequentemente perdidas em ermos ou povoações pequenas que lá nos esperam a determinado dia. Portanto, acresce o tempo de viagem e uma preparação mística para o que vamos encontrar.

As romarias também são festa.

Tudo o que escrevi acima faz parte da experiência de rumar ao “El Capricho”, em Jiménez de Jamuz, uma pequena povoação a sul de Leon rodeada pela extensa e tranquila planície castelhana.

Quando saímos do restaurante, pelas duas da manhã e gentilmente empurrados pela equipa de sala, vem dentro de mim uma mistura de sentimentos e emoções que, acreditem, ainda hoje estou a digerir… devagarinho, como as vacas!

Com ou sem pandemia, este ato religioso já andava a ser preparado pelo grupo. Assim como aquelas conversas em que se vai dando forma a um caminho e depois se toma a decisão, foi escolhida a data e marcado o repasto com 6 meses de antecedência. Com tempo para todos prepararem as suas vidas, e alguns começarem a rezar.

Quando assim é, as expectativas são altas. Não houve amigo ou conhecido que tenha dito mal da casa, os aconselhamentos de última hora alinham-se para algumas escolhas que acabam por ser depois as propostas da equipa de sala. “Se é uma experiência, é para virem experimentar tudo!” E assim foi.

Numa sala térrea e em ambiente rústico muito cuidado, o El Capricho apresenta uma grande proposta de entradas, todas variações da carne de vaca, como um hino a todo o animal e não só ao chuletón maturado que deu nome à casa. As entradas funcionam como um prelúdio que motiva os romeiros. É-nos proposto um crescendo de sabores e intensidades e, a pouco e pouco, vamo-nos enredando nas nuances da vaca velha. À nossa mesa chegou um rosbife de picanha, muito fino e intenso, saboroso, para comer devagar e não excluir a gordura, um tártaro de quadril maturado, com poucos condimentos onde a maturação propositadamente se destaca e nos surpreende, um chouriço (de boi) especiado e levemente picante e um tiradito do lombo, fatiado em pequenos pedaços que se desfazem na boca e deixam um sabor de outono e floresta.

A seguir vieram dois momentos grandiosos. Primeiro a cecina, um presunto da perna da vaca muito típico da região, caseira, curada e delicada (um dos comensais quis repetir como sobremesa, mas sem sorte), e depois o tutano de um animal velho, cremoso e suave, acompanhado de tostas, jalapeños suaves e toranja em pedaços, comido à colher.

O momento seguinte foi o prato principal, o que motiva a peregrinação, mas que na verdade é o complemento e o epílogo da homenagem à vaca velha. O chuletón de buey premium, a enorme costeleta de um animal com mais de 6 anos e maturada mais de 130 dias que nos calhou em sorte. Um puzzle de cortes que revelam sabores diversos a cada pedaço. Um mundo preparado ao ponto, que começa anos antes. O chef José Gordón acompanhou-nos durante o corte, próximo, intimista e cuidadoso, contribuindo para engrandecer o nosso jantar e fazendo-nos sentir parte do espaço, da adega, da mesa, da aldeia, da terra.

Partilhamos com ele o vinho que levamos, ele trouxe o dele para a mesa. Poderá haver imagem mais mística de partilha e religião?

O transcendente do El Capricho é a humildade com que tenho que admitir que a surpresa ainda existe, que há sabores ainda para conhecer e que a aprendizagem é contínua e, espero, infinita. E que essa e uma das maravilhas de ser gastrónomo.

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