O som kitsch de Omar pode ser um vício, tal como falar por cima das músicas

O fenómeno Omar Souleyman. Créditos: Mário Pires FMM Sines / Festival Músicas do Mundo
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Há cerca de uma década que Omar Souleyman é visita habitual dos palcos portugueses e, mesmo assim, em todas elas a sua presença continua a despertar um misto de expectativa e surpresa. E assim foi sexta-feira à noite em Sines: Milhares de corpos a deixarem-se guiar pelo som hipnótico deste cantor de casamentos sírio, numa espécie de rave no Castelo – inicialmente emulando maneirismos orientalizados com as mãos ou batendo palmas sincopadas com o cantor do bigode grosso, keffiyeh e o djellaba, mas depois soltando pura e simplesmente os músculos e os ossos para uma espécie de catarse coletiva, verdadeiramente festiva.

Já em Paredes de Coura, quando atuou pela primeira vez em Portugal em 2011, havia uma aura em torno deste cantor de casamentos, criada pelo seu espetáculo dois meses antes em Glastonbury. E até hoje, depois de já ter cantado e batido palmas em Lisboa, Gaia e Águeda, a aura mantém-se, e o fascínio também. Souleyman faz por isso. É parco e sintético em entrevistas, foca-se na sua biografia essencial – “cantor de casamentos e criador de ovelhas”, “seguidor da tradição musical” e pouco mais – não conversa com o público, defende-se por detrás dos óculos escuros, do bigode, do lenço e da túnica. Mesmo oriundo de um país em guerra civil, e ser muito interpelado por isso, tenta que a sua mensagem central seja a música.

Antes do início do concerto, e desde o anúncio do cartaz do festival, que se tentava perceber como o espetáculo imutável e singelo de Souleyman podia encaixar num festival de diversidade como é o FMM Sines. A própria chegada do cantor ao palco do festival era uma gestão de expectativas – depois de um concerto morno de um afrobeat limpinho e estilizado dos Antibalas. Subirá pelo lado direito do palco ou pelo esquerdo? De que cor será a túnica? Terá um camarim como os outros músicos ou entrará diretamente no recinto vindo do hotel, como aconteceu em Gaia? Quando Hasan Alo começa a debitar melodias kitsch do Korg de dois andares já todo o recinto do castelo estava de olho no palco e ao primeiro “olá” há toda uma reação explosiva de gritos e assobios da plateia, logo abafados pelas primeiras batidas e dai à rave foi um passo. Ou dois, dependendo da forma de dançar de cada um.

Festa Parsitan. Créditos: Mário Pires FMM Sines / Festival Músicas do Mundo

Quando há festa, não se pode dizer que haja uma forma errada de dançar. Ainda mais às quatro da manhã, e com uma orquestra de influências balcânicas. Assim foi, um par de horas depois de terminado o concerto de Omar Souleyman no palco marginal entrou Shantel & Bucovina Club Orkestar e (parodiando o disco de Emir Kusturica & The No Smoking Band) foi tempo de “unza, unza”. Despretensiosa e festiva, a música de influência balcânica deu continuidade à rave do palco do castelo. Claro que as influências ska, das orkestar como a Fanfare Ciorcalia, Taraf de Haïdouks ou Kocani não se medem em complexidade de metais, bateria e frases-slogan com os sintetizadores de Souleyman e a sua circunspecta comunicação verbal, mas o efeito nos corpos é idêntico. Festa é festa.

Susheela e o vício de falar no meio de concertos

Quando os concertos do penúltimo dia do FMM Sines Festival Músicas do Mundo começaram o ritmo era outro. Lucibela trouxe a sua experiência nos palcos do Mindelo para uma atuação que cruzou alguns dos estilos de Cabo Verde, composições novas e tradicionais, e mostrou a potencialidades da sua voz, com os temas de “Laço Umbilical”, o disco editado em 2018. Havia muito espaço para os mais destemidos arriscarem uma morna ou uma coladeira em frente ao palco, levantando a poeira iluminada pelo Sol que ainda aquecia a terra mas poucos arriscaram.

Susheela Raman em fase de consagração da carreira. Créditos: Mário Pires FMM Sines / Festival Músicas do Mundo

A Lua já tinha subido quando, pouco mais de uma hora depois, Susheela Raman cantava a Beatiful Moon, a segunda música do alinhamento para o festival, que deu para perceber os novos caminhos que esta anglo-tamil está a traçar, quase 20 anos de carreira depois. Muito mais complexo em estúdio, em palco o álbum resulta num interessante contraponto entre a percussão e a bateria e a viola e o baixo, parecendo chegar a um folk britânico quando o violino entra.

A cantora, comunicativa com o público, ia explicando o conteúdo das letras, embora em algumas zonas do recinto fosse impossível de perceber tantas eram as conversas cruzadas entre o público. “E o vestido dela? É giro”, dizia uma jovem a dois metros do palco.

A terceira música do alinhamento foi sobre vícios. Sherabi é contado na primeira pessoa por um alcoólico mas Susheela Raman explica que fala de coisas que qualquer viciado poderia contar. Uma possibilidade seria comparar com as pessoas que têm o vício de falar no meio de concertos, pessoas que à terceira música puxam dos galões do conhecimento sobre a música de determinado artista e proclamam: “está a surpreender” ou “esta batida parece Batida”, como reclamava um rapaz com acento algarvio já quase no final do concerto.

Chico César deu provavelmente o concerto mais completo. Créditos: Mário Pires FMM Sines / Festival Músicas do Mundo

Uma das vantagens da música de dança tocada alto – como foi Omar Souleyman ou Shantel – é que não se fazem ou ouvem os comentários. Comentários como “imira! A las dez y cuarto és Chico César”, como se fosse uma novidade. Claro que Chico César é às 22h15 mas entretanto está em palco a Susheela Raman e com canções do novo álbum Ghost Gamelan. Canções como Riverside, My Love, Ghost Child ou Sphinx, de como um espírito das pirâmides vem pedir consequências pelos nossos atos. Atos como conversar o tempo todo em cima de uma música vinda do palco e bater palmas no fim como se se tivesse ouvido um único acorde. Apetece dizer “deixa de conversa mole, Luzia”, como canta Itamar Assumpção e como cantou Chico César, na noite de sexta-feira.

Em noites de fim de semana, o público aumenta no Festival, em número e é mais heterogéneo, tornando quase inevitável a confusão, estimulando o convívio e as conversas paralelas ao espetáculo. O ruído da plateia diminuiu com a entrada em palco do nordestino, que abriu o leque das suas reconhecidas habilidades como compositor misturando as suas músicas com uma série de homenagens musicais – como a citada a Itamar Assumpção ou a Geraldo Vandré com um medley que incluía Pra não Dizer que não Falei das Flores – e sociais, à condição feminina (com Palavra Mágica e Mamã África) e nomeadamente a Marielle Franco trocando os versos de À Primeira Vista. Um concerto memorável. Antes da noite de rave.

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