O que é bom na curiosidade é a inquietação. Quando a curiosidade é gastronómica, o extraordinário é sentir a vertigem da experimentação. Valerá sempre a pena fazer crónicas de coisas que saem do normal, de cozinhas que são menos comuns ou de harmonizações que nos desafiam a pensar de outra forma, que nos levam a testar para ver como é.
Andar de olhos atentos e coração aberto faz parte da alma do critico gastronómico. Aquele que cristaliza não evolui e deixa de compreender o mundo.
Foi isso que me levou a aceitar o convite dos whiskies Glenfiddich, que propuseram harmonizar algum do seu portfólio com a comida tradicional do restaurante Gaveto, em Matosinhos.
A ideia não é inovadora. Várias marcas de destilados procuram empurrar para a mesa um consumo que se faz muito depois da refeição. O que acontece habitualmente é que é a cozinha que tem de trabalhar muito os seus pratos para se adaptar aos sabores extremos de um destilado para conseguir equilibrar uma refeição. O desafio que é para o palato beber whisky e comer ao mesmo tempo!
João Silva, dono do Gaveto e habituado a lides de harmonização de vinhos, fez questão de não modificar a sua cozinha. Afinal de contas, a matriz tradicional atlântica do restaurante é um dos seus esteios, pelo que teriam de ser as bebidas a adaptarem-se ao que tem de melhor o seu menu. A solução? Intermediar o whisky e a comida com cocktails.
Os cocktails que foram chegando à mesa tinham um aspeto sempre igual. Se estivéssemos distraídos diríamos que era sempre o mesmo (tal como os vinhos, se só valorizarmos a visão). Elaborados com cada um dos whiskies que a Glenfiddich queria apresentar para o respetivo prato, a ideia do bartender Nelson de Matos foi muito bem pensada e melhor executada. Acalmou a impetuosidade do whisky, homogeneizando o lado visual e realçando sabores na mixologia que pudessem promover as ligações, como temperos, especiarias, sumos ou ervas. Deste modo, nem o prato nem o whisky perdeu identidade.
A ligação mais bem conseguida do jantar foi um carabineiro gigante no seu molho, servido apenas com batata palha e limão, harmonizado com um Glenfiddich “12 anos”, com aneto, lima pêssego, sal e soda. O carabineiro apresenta sempre uma carne doce e firme, especiada pelo molho e potenciada pelo sal e as batatas. O whisky, não sendo dos mais intensos do portfólio, complementou muito bem com um marisco que, em teoria, teria sempre muita dificuldade em alinhar no mesmo diapasão da bebida.
O Corte Chateaubriand com demi glace já precisava de algo mais vivo e a escolha recaiu numa série limitada de whisky estagiado em cascos de rum, o “Fire and Cane”, com um caráter mais doce e apimentado, ao qual o bartender adicionou moscatel roxo e pimenta de Sishuan. Como o molho tem um final doce e é espesso, era necessária uma proposta que marcasse a sua presença para manter tudo sem desequilíbrios.
Nas sobremesas, o trabalho torna-se mais fácil. Dada a natureza própria dos whislies, o melhor é não haver açúcar em excesso. A conhecida tarte de amêndoa do Gaveto, acompanhada por uma bola de sorvete de limão era a escolha obvia e foi acompanhada por um Glenfiddich 21 anos misturado com chocolate branco, avelã e um Madeira Boal, que acabou por ser uma das surpresas da mesa.
Houve ainda tempo, no seu lugar mais habitual, para provar dois whiskies após a refeição. Uma edição rara do Glenfiddich “Grand Cru”, estagiado em cascos que provinham da região de espumantes mais conhecida do mundo, fresco e vibrante, e o mais habitual, sereno e contemplativo “23 anos”, um clássico da casa, suave, intenso e com um final tostado muito prolongado. Foi um final feliz num jantar desafiante. Habitualmente os destilados bebem-se sozinhos, ou com um charuto a acompanhar. Gosto deles neste lugar, no final, para rematar as conversas que se vão fechando lentamente. Mas é bom ser desafiado para o inesperado e ver que o inesperado também pode ser bom.