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A música fluiu em Sines e a chuva molha-tolos molhou-nos a todos

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A música fluiu em Sines e a chuva molha-tolos molhou-nos a todos
Melanie de Biasio. créditos: Mário Pires - FMM Sines/Festival Músicas do Mundo

Um grupo ébrio desceu pelo lado direito do palco em passo acelerado e aos solavancos entre si. Depois do dia de calor, de banhos e futebol de praia, os corpos denotavam cansaço e um refrescamento à base de cerveja. Calcando indiferente a hortelã espalhada pelo chão, eventualmente sobre o efeito de outras ervas, o grupo esperava que às nove da noite no palco do Castelo de Sines já houvesse festarola que lhes permitisse extravasar a energia induzida que lhes consumiu os corpos. Chegaram demasiado cedo. Haveria festa e refresco, mas só mais tarde.

Àquela hora, Melanie de Biasio ocupava o palco entre silêncios, movimentos cinemáticos e danças sonoras, cantando em bicos de pés “As I walk from place to place/ My long shadow won’t leave a trace/ Greed and power may prevail/ But you won’t find me trapped in this jail/ You won’t find me in any jail”, de Gold Junkies. Não será um grupo de festarolas que lhe vai condicionar o espetáculo, quando nem sequer o alinhamento o faz – “não temos setlist”, explicou à tarde num encontro com jornalistas e público do FMM -, não gosta de ficar presa, gosta de se surpreender, disse.

Ao som de Brother deambula pelo palco nas pontas dos pés, num fundo preto e branco, vestida de preto, a brilhar as sandálias douradas parecendo fazer as pontas de uma bailarina e pé-ante-pé vai cantando “brother, brother, brother”. Todo o corpo de Melanie De Biasio parece fluir ao som da música, ocupando o espaço pelo meio do palco que fica do som das teclas, das cordas e da bateria – e o som da voz. As mãos e a flauta transversal indicam o elo de ligação e direcionam o fluir da musicalidade criada em palco. Não é dança, contrastou, “eu não danço, tenho é movimentos que me são naturais na produção musical e, no fundo, o que acontece é um “flow”, que vai desde o corpo para a música”.

Maestrina em Pontas

Gotículas vinham com o vento do mar e humedeciam o palco, impactando o dramatismo da música, o preto e branco do cenário, entrecortando a luz branca da iluminação em The Flow e a humidade chorosa manteve-se em Your Freedom is the End of Me num corpo dramatizando a letra e terminando em posição de cócoras, como aconteceu em And my heart goes on e Let me Love you.

Como uma maestrina em pontas dirige uma performance em que o corpo e a voz se tornam num só, num som ou em silêncio, sem que nenhuma palavra seja simplesmente cantada e nenhuma nota da flauta simplesmente soprada, lembrando, seguindo as pisadas de Laurie Anderson. “Em palco, sabemos como começa uma música e sabemos como vai acabar mas nunca sabemos o que vai decorrer entretanto”, contou. “Gosto de me surpreender, o concerto não pode ser aborrecido para os que estão em palco”. Ou seja, de Biasio seria o mais indesejável dos encontros possíveis para o grupo da festarola. Mas ela está bem com isso: “as pessoas podem não gostar ou não estar com o ritmo que é necessário para o concerto mas acontece, para nós é necessário haver um determinado ritmo e um determinado fluir para que o público encaixe connosco”. Mesmo que não seja todo.

Nubya Garcia. créditos: Mário Pires – FMM Sines/Festival Músicas do Mundo

Crescendo

Uma nova maestrina sobe ao palco depois de Biasio. Nubya Garcia segue as tendências mais quentes do jazz fusão e tocou num cenário que parecia retirado de Londres, a sua cidade, incluindo o vento frio. Nascida de pais caribenhos, a compositora cruza os genes, as músicas africanas e a tradições urbanas, o que lhe valeu o prémio revelação da Jazz FM em 2018. Em Sines deixou um cartão-de-visita e uma surpresa: “é a primeira vez que tocamos com chuva”.

Sim, a morrinha do mar continuava. Os patrocinadores discretamente começam a distribuir capas de chuva aos necessitados – no FMM Sines, os patrocinadores não são opressivos – e alguns dançam à chuva. O grupo da festarola parecia mais animado e duas delas já esperavam que subisse ao palco Dino D’Santiago.

Agradecido por finalmente subir a um palco do festival, D’Santiago teve a consagração de público que os prémios Play de Música Portuguesa já lhe disse outorgado este ano, com o melhor álbum, melhor artista solo e prémio da crítica. Foi uma caminhada de esforço que representa uma nova etapa no crescimento da música de raiz africana em Portugal. No recinto do Castelo, onde acede quem tem o bilhete do festival, e nas aforas, onde a organização disponibiliza écrans gigantes e som digital para que quem não paga possa viver os concertos, milhares dançaram com mornas, quizomba e funaná.

Mas a apoteose da dança e da festarola surgiu depois da meia-noite, com LaBrassBanda. Se Dino D’Santiago conseguiu por quase toda a gente a dançar, os bávaros liderados por Stefan Dettl conseguiram coreografar milhares de pessoas, à chuva. Ska, Techno, reggae em modo fanfarra “bavarian style” para um fim de festa que os levou a prolongar a atuação muito paara lá do tempo previsto, tal era a animação do público. Houve de tudo, desde clássicos Top of the Pops dos anos 90 até punk, tocados com tuba, trombone e trompetes. Nessa altura, o grupo do lado esquerdo do palco, já menos ébrio graças à dança e morrinha que foi caindo, desceu ainda cambaleante para a beira-mar para continuar a festa com o hard-rock dos Al-Qasar e o afro-beat dos Santofri.