O Espírito do Lugar é sempre um resgate da memória, feito de fantasia dramatúrgica, uma deriva para a ficção. A memória perpassa pelos locais percorridos e ganha asas. E assim, alada, pousa artisticamente sobre eles. A Circolando continua a devolver-nos os lugares, a maior parte das vezes enquanto espaços crus e devolutos, ou pelo menos quando estão menos ocupados, concebe o espaço como uma espécie de reduto de criação, instala-se e instala-nos. Certo é que com esta trupe performativa de intérpretes nunca sabemos se aderimos ao conforto se ao confronto.

O Quartel do Monte Pedral, conhecido nos últimos anos de vida enquanto sigla CSP – Centro de Selecção do Porto, local onde todos os mancebos de 18 anos iam fazer as provas de aptidão para o serviço militar, é agora um espaço devoluto. As instalações estão prestes a ser demolidas para darem lugar a um complexo de habitacional de 370 casas de rendas acessíveis, para a denominada classe média. Isto para além da edificação de residências universitárias. Isso é o futuro, no passado ficcionado da memória ‘mandou’ a Circolando, pelo menos nos dias 20, 21 e 22 e 27, 28 e 29 de Setembro, datas correspondentes à ocorrência do Espírito do Lugar 5.0, no espaço do aquartelamento desactivado (em 2014) e confinado entre as ruas da Constituição, Serpa Pinto e Egas Moniz.

Domingo, 29 de Setembro, última incursão no ‘programa das festas’: são 18h00 e há gente a subir a rampa para a entrada do Quartel. À entrada, Cláudia Santos, da equipa da Circolando, atribui um número de grupo a cada um dos espectadores que vão percorrer os diferentes trajectos. Seguimos em pequenos contingentes separados e sem coincidência de percursos. Resta esperar pelos numerosos candidatos que engrossam a fileira dos que permaneceram em lista de espera até ao início do espectáculo-percurso. Espalhados pela parada, há alguns ‘visitantes’ que cheiram os cantos ao local no hiato de tempo curto em que se aguarda o tiro-de-partida, expressão a preceito, pois cheira-nos a jogos de guerra.

Um dos responsáveis dá as boas-vindas a todos e anuncia os guias que ‘tomarão as rédeas’ a cada um dos grupos numerados, reúnem-se os diversos elementos e está dado o mote rumo ao primeiro posto cénico-dramatúrgico. Depois de palmilharmos dois lanços de escadas, subimos ao Refeitório, local de eleição para “Névoa”, um episódio preenchido de incenso a simular nevoeiro que se adensa de forma progressiva. Uma bruma esbranquiçada, talvez até fumo num cenário de guerra, presumimos. Há um canto murmurante que vai ganhando pulmão e uma figura feminina (interpretada por Daniela Cruz) que emerge do seio desta névoa, arrastando-se paulatinamente com um aparente ladrilho, que afinal é um parto, aos pés e uma candeia na mão até chegar a nós: ‘os incensados’ do episódio. A figura permanece no espaço em pose de oração. Nós prosseguimos.

Depois de vencermos os interstícios do edifício, atravessamos a parada, onde figura o lema “De luso não perdeis o pensamento” em letras bem visíveis, subimos um outro lanço de degraus que desemboca num corredor longo, estamos na Ala dos Sargentos.
Ouvimos uma sirene que parece ser a de uma ambulância ou de um megafone, o ruído provém de uma figura masculina (actor Dori Nigro) de porte atlético, tronco nu e uma espécie de saiote de seda verde, todos o seguem até a um compartimento onde o homem mestiço vai representar, de forma simbólica, o explorado nativo de todo o mapa colonial português. O desempenho é intenso, a luz é um bem muito escasso na divisão onde nos encontramos. Há uma cama de rede com letras explícitas no meio a dizer ‘Democracia’ (que balança) e só vemos isso quando o homem deitado naquele leito pendente se levanta. Há ainda uma saca com um peixe cor-de-laranja pendurada no candeeiro do tecto.

O discurso é libertário, marcante e expurga a carga de exploração do homem pelo homem. Simulam-se tiros com batimentos secos e pesados em madeira e no meio de uma breve penumbra há a hipótese de visualizar o “Quadro Negro” cujo significado é dúplice: podemos ver imagens de Malcom X e Martin Luther King, entre outros, e compreender em que estado todas essas ocupações de territórios e criações de impérios redundaram. E nem uma Nossa Senhora verde e reluzente vale aos culpados. O homem acaba de joelhos a rezar num nicho feito altar, momento que observamos a partir de uma parede com um buraco de grandes dimensões. Está exausto, tudo derivou de um movimento de sapateado estonteante. Fica banhado em suor.

Retomamos o trajecto, desta feita rumo à Caserna, não sem que deitássemos o olho a algumas pinturas em reentrâncias nas paredes, ‘frescos de 1997’, da autoria de Adão Silva, certamente um soldado dessa incorporação. Deparámo-nos com uma pequena sala preenchida por erva-das-pampas, uma planta invasora, cuja instalação mais ou menos artística simboliza um ambiente selvático. E na sala ao lado resistem alguns cadernos e papéis com informação militar desclassificada junto com gavetas desconjuntadas num amontoado caótico.
Estamos agora no perímetro espacial da Caserna, habitat de descanso e lar quotidiano dos soldados. Encostados às paredes de um longo corredor, depois de escalados os degraus anexos às messes de oficiais e sargentos, vemos uma figura esfíngica, vestida de negro, uma viúva, que representa também neste exercício e em simultâneo uma madrinha de guerra. “Aerogramas” é o título do episódio teatralizado a que assistimos. Celebra uma das poucas possibilidades de contacto entre os soldados e a família, a namorada ou a madrinha de guerra, uma carta que se enviava por correio aéreo sem necessidade de pagamento, por conseguinte acessível aos militares, que de forma mais ou menos telegráfica, tinham a possibilidade de comunicar com os entes queridos e também com outros soldados.

Costanza Givone incumbe-se com zelo da tarefa interpretativa: quer quando veste de negro fechado de viúva quer quando expõe toda a sua capacidade sedutora junto dos homens ali reunidos no corredor ou, acto contínuo, na sala para onde convida toda a gente a entrar, a interacção com o público é digna de registo. E a leitura dos sobrescritos também fica sublinhada na memória. Abandonamos a sala com frases avulsas na parede, excertos dos aerogramas e a rota de navegação terrestre faz-se rumo ao Barracão, a que poderemos chamar Posto 4 deste espectáculo-percurso.

A temática da Guerra Colonial ganha ainda uma maior dose de ênfase no espaço do Barracão, Paulo Mota evoca o fascículo performativo da “Dor Fantasma”: um soldado dos Comandos está estendido no interior de uma vala fúnebre aberta a partir do cimento e com alguns palmos de terra de fundo. O destinatário deste buraco é alguém que estando vivo, vê a morte à frente todos os dias num assomo de memória constante. O mesmo é dizer, um quotidiano permanentemente marcado pelo stresse pós-traumático de guerra, que alude aos sonhos marcados por uma presença no palco do conflito que não é real (quando ouve os escapes dos carros e os foguetes e os confunde de imediato com tiros e bombas). O personagem do militar está adicto a um jogo de guerra cujo ecrã está um pouco adiante dos seus pés e que todos vemos a partir do cimo da cova rectangular: trata-se, bem se pode dizer, de uma trincheira para jogos de desconsolo(a).

Um pequeno trajecto a percorrer e estramos no espaço da Cavalariça, num momento intitulado “Mamã”. Convém recordar que o quartel foi na génese ocupado pelo Regimento de Cavalaria, no remoto ano de 1912. Os separadores para os cavalos têm no cimo das paredes dezenas de velas. Um enigma paira no personagem que se insinua, qual Anjo Negro, pelo território não muito extenso deste ‘padoque’. Pela negritude e pelo porte distinto arriscamos adivinhar que possa ser um puro-sangue inglês. Aos poucos, a figura em simulação de equídeo, acerca-se dos circunstantes em movimentos suaves que definem uma marca de elegância num percurso breve ao longo do espaço. Fita-nos e nós devolvemos o olhar. E com graciosidade na pose, retira-se. Ana Isabel Castro é a actriz de serviço num trabalho a preceito.
A passagem por uma sala em que se difunde um vídeo cujo móbil de interesse é a produção, montagem e desmontagem da espingarda automática G3, a arma de eleição das forças armadas nacionais desde o conflito ultramarino, assim como de material de propaganda a favor da política colonial do Estado Novo antecedem um momento tenso consagrado em “Nús Cus de Judas” em novo perímetro, o da Oficina.

Baseado na obra de António Lobo Antunes “Os Cus de Judas”, reflecte as vivências dos combatentes na frente angolana do conflito, da permanência de 25 longos meses – uma ‘missão comprida’ e de como a Guerra transforma os homens. A acção protagonizada pelos actores Gil Mac e Vicente Gil transpira violência na expressão física e psicológica, incredulidade e desespero por estarem ali numa luta sem sentido.

O rodapé, a derradeira etapa deste Espírito do Lugar 5.0 é uma epifania que louva os atributos do cavalo, esse totem icónico que perdura na cronologia do Quartel do Monte Pedral desde 1912 até 1979, altura em que o Regimento de Cavalaria é transferido para Braga. Percebe-se ao entrar no edifício do Picadeiro, ainda em muito bom estado, o significado do animal para este local em concreto.

São convocados todos os intérpretes que se dispõem em círculo a envolver a alguma distância a tratadora e o cavalo, o que se passa em seguida é quase uma devoção à divindade equídea. Tudo isto ao som de uma marcha tocada presume-se por uma banda militar pré-gravada. Os espectadores estão nas alas laterais a presenciar os movimentos de circularidade suave que a tratadora ensaia com o cavalo, os soldados estão quase despidos e banhados em talco, de repente jazem na terra e é assim que tudo finda em “Draco” – o mitológico Dragão Voador que também pode ser constelação. Aqui foi, pelo menos, uma grande estrela.
PS – As intervenções no Corredor e Salão estiveram a cargo de Gonçalo Mota e Vítor Costa
Direcção artística: André Braga e Cláudia Figueiredo
Co-criação e interpretação: Ana Isabel Castro, Costanza Givone, Daniela Cruz, Dori Nigro, Gil Mac e Vicente Gil, Paulo Mota
Vídeo: Gonçalo Mota e Vitor Costa
Sonoplastia: João Sarnadas
Apoio artístico: Pedro Vilela
Participação especial: Marta Pinto, Draco e Carriça
Coordenação técnica e montagem: Pedro Coutinho com o apoio de Gonçalo Mota, Vitor Costa e Pedro Vilela
Direcção de produção: Ana Carvalhosa
Produção e direcção de cena: Cláudia Santos
Apoio à produção: Carolina Cardoso
Guias: Carlos Batista, Carolina Cardoso, Joaquim Martins, José Costa, Mariana Rusu, Nuno Marinho, Patrícia Leitão
Agradecimentos: Miguel Brandão / Centro Hípico de Valongo, Beatriz Pereira, Beatriz Rocha
Co-produção: Circolando e Câmara Municipal do Porto / Cultura em Expansão