Importa dizê-lo aos leitores, uma pergunta num título é sempre algo pouco habitual. Contudo, esta é uma interrogação que perpassa depois desta décima edição da iniciativa promovida pela Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, através da empresa Feira Viva e em parceria com a Ritmos.
O auditório do Europarque converteu-se numa alternativa simpática e acolhedora face a um Cineteatro António Lamoso em obras e impossibilitado de receber a marca histórica que um décimo aniversário sempre consagra. Mesmo sem bolo ou velas, certo é que se cantou, e muito, no “Gente Sentada”.
Se tivermos em conta que a sala de espetáculos tem uma lotação de 1500 lugares, a média de espetadores terá rondado a metade. Sim, nesse capítulo, o Europarque revelou-se demasiado amplo em comparação com os 600 lugares que a velhinha sala do Lamoso possui. Todavia, o Festival para Gente Sentada é uma coisa de nicho(s) em termos de público e isso explica muita coisa. Talvez não se possa falar numa crise de crescimento, é uma verdade paradoxal, mas ficou a ideia de que terá ganho público na ordem de uma centena a centena e meia de presenças, o que neste caso não é despiciendo. Efeito Gisela João? Talvez sim.
Tudo começou para além da hora prevista, portanto depois das 17h00, com os Can´t Win Charlie Brown, a banda entrou animada, quando muita gente ainda nem tinha entrado na sala, peculiares hábitos lusitanos. E logo a seguir, “Green Grass” apresenta, por contraponto, uma outra faceta da banda, a das melodias saborosamente melancólicas que emergem de algum do seu repertório, “Be My World” fica igualmente no ouvido. A conjugação das vozes por entre guitarras, xilofone, teclados, bateria e baixo assina uma atuação competente a durar uns aproximados 50 minutos.
Os londrinos The Veils constituíram a aposta forte de uma programação característica de um ano em regime de contenção orçamental que, não fugindo à regra, se verificou também no ‘Gente Sentada’, a banda liderada por Finn Andrews entrou com intensidade rítmica em palco, desde logo disposta a conquistar alguns fãs e uma miríade de curiosos. Os autores de “Lavinia” e “The Letter” evidenciaram uma dose de endurance musical firme, com a voz rasgada do vocalista a insinuar-se, o baixo a exalar o charme de uma instrumentista dominadora das cordas, a bateria ritmada a demonstrar uma prestação entre a discrição e o virtuosismo, teclados funcionais e duas guitarras que não deixaram de se fazer sentir.
Walter Benjamim, por seu turno, deixou a sensação de uma presença que até ali tinha faltado: a de um verdadeiro cantautor no festival. “The Cannonball” marcou um introito seguro, “Twenty Four”, com mais dois músicos no estrado, espelha um lado mais festivo do projeto musical de Luís Nunes (sem o pseudónimo artístico), há solos de guitarra a participação de um baixo potente e uma bateria ‘com cheiro a pau de baquetas’. Quando transita para as teclas, a sonoridade passa a ser a de um autêntico ‘Walter… Manzarek’, mas a espaços, no tom da música há um certo espectro de Tom Waits. Ficou a sensação de que o projeto do autor do sóbrio, mas não menos aclamado, “The Secret Life of Rosemary and Me” tem pernas para andar.
Gisela João era a incógnita para esta décima edição, conseguiria a jovem fadista de Barcelos encaixar-se neste diapasão marcado pelas sonoridades indie? Pelo que se viu, a resposta é claramente afirmativa. O desafio é maior quando se trata de saber em que ‘puzzle musical’ não encaixará a intérprete. Dona de uma voz cálida e de um singular timbre rouco, de uma autenticidade desarmante no trato, de um certo jeito gaiteiro ainda que distinto, a fadista vai conquistando meio mundo. O que se viu ao longo de mais de uma hora através de temas como o clássico “O Meu Amigo Está Longe”, em “Voltaste”, ou na renovada versão ao nível da letra, da autoria da amiga Capicua, para a “Casa da Mariquinhas” é de facto assinalável. Ficam na memória algumas respirações da intérprete.
Para o ano há mais, o António Lamoso já não possuirá o peculiar cheiro a mofo que dava um certo elã ao festival, a ver vamos se com o da tinta fresca nada se altera.
Texto: João Fernando Arezes
Fotos: Vânia Costa/Feira Viva