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O Elefante na Sala: um país que discute véus enquanto tapa os olhos

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Portugal voltou a inflamar-se com um tema que serve de espelho à nossa decadência política. Desta vez? A burca. O debate sobre o que uma mulher veste (ou deixa de vestir) ocupa o espaço que devia ser reservado àquilo que o Estado deixou de fazer. É a velha cortina de fumo (ou, neste caso, de tecido), levantada sempre que falta coragem para enfrentar os problemas reais do país.

A “lei da burca” é o exemplo perfeito desta política de distração. Sob o pretexto da “defesa dos valores ocidentais”, ergue-se uma cruzada simbólica que não resolve nada, mas alimenta o ressentimento e a agenda da extrema-direita. Os pareceres do Ministério Público e da Ordem dos Advogados já disseram o que havia a dizer: é inconstitucional, discriminatório e inútil. Mas a inutilidade nunca impediu ninguém de fazer barulho, principalmente quando o barulho rende votos.

Enquanto os senhores do moralismo debatem panos, o país real continua em ruínas. As escolas não têm professores, os alunos são os novos órfãos do sistema e os que ficam a tentar ensinar fazem-no com uma mão no quadro e outra no bolso do casaco à procura dos ansiolíticos que lhes seguram os dias. A tecnologia continua a ser tratada como um inimigo de salão e preferem proibir telemóveis em vez de repensar métodos de ensino. O futuro é digital, mas Portugal insiste em permanecer analógico, preso ao manual de 1998 e ao medo de 1926.

No Serviço Nacional de Saúde, a desintegração avança em silêncio. Médicos exaustos, enfermeiros a sair, serviços de urgência fechados, maternidades fechadas, listas de espera que parecem linhas de um poema surrealista sobre o abandono. Mas disso fala-se pouco. O governo, ocupado a medir véus e a calibrar indignações seletivas, prefere fingir que a saúde se resolve com slogans e reestruturações cosméticas.

No trabalho, o mesmo cenário. A tão celebrada “flexibilização” do Código Laboral é uma palavra polida para descrever o regresso à servidão. Contratos precários, horários líquidos, direitos evaporados. O sonho da estabilidade transformou-se num luxo reservado a poucos, enquanto o resto do país se debate entre recibos verdes e recibos de vencimento que mal chegam ao fim do mês. As mulheres continuam a ser as primeiras a cair. Com salários mais baixos, carreiras mais curtas e a velha penalização da maternidade que o progresso insiste em ignorar, a culpa da crise laboral é delas, por quererem salários iguais e direito a constituir família sem ter de parir à porta do escritório e dar de mamar ao catraio, enquanto segura o telefone com a outra mão e a porta com o pé, para o senhor doutor engenheiro entrar sem se sentir emasculado.

E, no meio disto, o governo lá vai sobrevivendo. A estender uma mão à direita “respeitável” e outra a acenar, com subtil cumplicidade, à extrema-direita que ladra alto, mas já se senta à mesa. É o novo bloco central da conveniência: substitui-se o grito revolucionário dos Che Guevaras da esquerda pelo novo líder da revolução dos bons costumes: é o “CHEG’a Vara”, essa aliança tácita entre o medo e a sobrevivência política. É a versão moderna do caceteiro político que empunha o moralismo como arma de distração, enquanto o país se afunda no lodaçal da sua própria indiferença.

Esta convergência envergonhada é visível em tudo: na linguagem securitária que começa a infiltrar-se no discurso governamental, nas propostas de controlo social disfarçadas de políticas de ordem e nas cedências estratégicas ao populismo do ressentimento. O governo, incapaz de inspirar confiança, prefere capturar o léxico do medo, o discurso do “nós contra eles”. Os “eles”, claro, são sempre os mesmos: os emigrantes, os pobres, as mulheres que ousam ser diferentes, os jovens que não se resignam.

É mais fácil legislar contra o véu do que olhar para o vazio que ele simboliza.

GIlberto Pereira

O país que se orgulha de ter derrubado ditaduras começa a cortejar perigosamente com os seus tiques. Sob o disfarce da moderação, normaliza-se o discurso da exclusão, legitima-se a intolerância e reabilita-se a ideia de que há portugueses de primeira e de segunda. É uma alquimia política inquietante: mistura-se o autoritarismo da extrema-direita com a complacência de quem devia combatê-la. O resultado é um governo que já não governa, um governo que apenas reage, que mede o pulso às redes sociais e ajusta o discurso ao humor do populismo.

E assim o país discute burcas enquanto tapa os olhos. Ignora o colapso da educação, da saúde e da justiça social, porque dá mais trabalho reformar do que indignar-se. Falta visão, sobra ruído. Falta ética, sobra conveniência. Falta futuro, sobra medo.

O elefante continua ali no meio da sala, quietinho, imenso, farto. Mas ninguém o quer ver. É mais cómodo gritar contra o pano do que encarar o espelho. E o espelho, esse, mostra-nos que o que realmente nos ameaça não é o islamismo, não é o estrangeiro, não é a burca. O que nos ameaça é a mediocridade travestida de moral, e a cumplicidade dos que se dizem democratas enquanto abanam a cabeça ao som do tambor do medo.

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