InícioEspeciaisCrónicasElefante na Sala: A luz dos teus olhos nos meus

Elefante na Sala: A luz dos teus olhos nos meus

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Enquanto, à luz trémula de velas improvisadas, enfrentávamos a escuridão, os nossos rostos estavam marcados pela incerteza. Cada hora que passava era mais um peso sobre os ombros. O nosso sorriso forçado parecia feito de cera, tentava disfarçar a angústia para que os miúdos não percebessem a nossa preocupação. Queríamos que eles descansassem tranquilos, como se nada estivesse a acontecer. Mas, no fundo, havia uma paz estranha. Uma paz que não vinha da ausência de tensão ou do alívio momentâneo, mas da luz dos teus olhos nos meus. Porque é na escuridão que encontramos a verdadeira clareza. Na ausência de tudo o resto, foi a tua luz que, contra todas as adversidades, se manteve acesa. E, nessa luz, percebi que ainda há algo que vale a pena. Algo que não se apaga, mesmo quando tudo o resto sucumbe à noite. A paz que me dá a luz dos teus olhos nos meus.

Foi o dia vinte e oito de abril de dois mil e vinte e cinco. Ou, se preferirem, 28.04.2025. O dia em que Portugal se apagou. Não se apagou da memória coletiva, das gargalhadas ao entardecer ou das pressas para chegar a casa. Não desapareceu do mapa por intervenção maníaca de um qualquer novo-ditador que parece germinar em cada esquina da nossa contemporaneidade. Portugal simplesmente ficou sem energia. E, mais do que isso, ficou sem rumo, como uma caravela que se afasta da costa e se vê à deriva, sem saber se o vento virá ou se o farol se vai acender.

Não me surpreende que tenha acontecido. Não deveria surpreender ninguém. Afinal, um país com mais de 800 anos, que atravessou tantos ciclos de luz e sombra, tinha que, eventualmente, cair de cansaço. Aquela bolha no calcanhar, aquela ferida antiga, iria acabar por rebentar. E, tal como uma velha coluna de mármore rachada, Portugal quebrou. No dia vinte e oito de abril de dois mil e vinte e cinco, o país apagou-se. Não houve semáforos a ditar o ritmo circulatório das nossas ruas apinhadas. Não houve luzes acesas a balbuciar promessas de segurança nas ruas escuras. Não houve telemóveis ou smartphones a disparar sons de notificações, a preencher o espaço com mensagens rápidas e impessoais: “O que se passa?”.

E foi então que, pela primeira vez, o mundo ficou realmente em silêncio. Não o silêncio forçado pela falta de palavras ou pela ausência de som, mas o silêncio genuíno, aquele que só um desligar verdadeiro pode proporcionar. O tipo de silêncio que nos faz pensar no que está a acontecer, sem a distração do bombardeamento constante de posts, likes, WhatsApps, Instagrams, TikToks, música a ecoar nas caixas de som de bares e festas, videochamadas no meio da carruagem do metro apinhada de corpos. A era digital, com toda a sua promessa de conectividade, tinha-nos cegado para o facto de que, por trás da cortina de pixels e likes, o mundo real, aquele em que respiramos, tocamos e sentimos, estava a desvanecer-se à nossa frente.

Claro que, como bons portugueses, a culpa é sempre de alguém. A culpa é do governo, dos espanhóis, do vizinho que põe música a todo o volume, da Cristina com a sua fábrica a todo o gás a produzir o seu “Pipi”. Não, a culpa não é nossa. Nunca é. A realidade, no entanto, é mais desconfortável. Os nossos governos, ano após ano, não souberam planear o futuro. Focaram-se em manter a máquina a funcionar a qualquer custo, sem pensar no que viria depois. Apostaram na privatização de sectores fundamentais da economia e do próprio Estado, para engordar outros bolsos. O país foi-se desmoronando sob a gestão de uma classe política que preferiu vender o futuro em nome de um presente ilusório, feito de números bonitos em balanços financeiros.

E, no meio disso tudo, lá fomos nós, os portugueses. A viver na dicotomia constante de um país que se ergue pela força do desenrasque, mas que se curva diante da mediocridade. O povo português é um povo resistente, é verdade. Mas essa resistência muitas vezes transforma-se numa subcultura de atropelo do próximo, da chico-espertice, da inveja disfarçada de simpatia. Somos um povo com o coração aberto, é certo. Mas será que esse coração aberto não é, na verdade, a nossa penitência? A nossa desculpa para sermos o que somos, sem nunca realmente enfrentarmos o que deveríamos mudar? Enquanto tentava acompanhar a atualidade no meu velho rádio a pilhas – a velha rádio que sobrevive aos avanços da tecnologia como um dinossauro amestrado que aprendeu a viver entre a gente – , ouvi exemplos desta disparidade de gente portuguesa. Pessoas que nunca se viram antes a partilhar água para enfrentar o calor. Estranhos a oferecer boleia porque os autocarros ou o metro não funcionavam. Pessoas nas filas do supermercado a ceder um garrafão de água, ou uma garrafa, a alguém que chegou mais tarde e encontrou prateleiras vazias.

E depois a outra face da moeda: nas zonas onde estava mais gente aglomerada, e em aflição, o preço das garrafas de água aumentou duzentos e trezentos por cento. Gente que se empurrava para tentar agarrar a última lata de atum da prateleira do supermercado.
Todo um rebuliço que poderia ser o primeiro episódio de uma qualquer série pós-apocalíptica, provocada apenas por uma coisa quase insignificante, dizem: dinheiro. A energia em gerada em Espanha é mais barata do que a gerada em Portugal. E para maximizar lucros, quando a procura é maior, como em dias de calor como o de vinte e oito de abril de dois mil e vinte e cinco, em vez de termos um aumento de produção energética temos um processo de importação de energia vinda de Espanha. E Portugal apagou. Em nome do vil metal. Dirão os especialistas “em nome da liberdade económica e financeira”. Mas conhecemos o que verdadeiramente controla o rumo que leva esta nossa Caravela Portuguesa. A nossa liberdade é esta: aceitar, e desfrutar deste desamarrar de fios invisíveis que nos transformam em marionetas de cabeça baixa a olhar para as mãos, enquanto não voltamos a repetir tudo outra vez.

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