InícioCrónicasA OpiniãoElefante na Sala: Entre o Voto e o Vazio

Elefante na Sala: Entre o Voto e o Vazio

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Há momentos em que o país parece caminhar como quem sobe a calçada de Alfama num dia de chuva: escorregadio, hesitante, a tentar manter o equilíbrio entre a memória e o desencanto. As eleições que agora se aproximam não surgem como celebração da democracia, mas como reflexo de um mal-estar profundo — quase uma febre que, depois de tanto se ignorar, exige agora que o corpo político seja examinado a fundo. E não, não estamos a falar de uma simples constipação institucional; trata-se de um sintoma mais grave, enraizado em promessas por cumprir, opacidades cúmplices e um progressivo distanciamento entre governantes e governados.

O atual governo, que chegou com ares de renovação e palavras doces sobre estabilidade, acabou por ser mais uma versão de um guião que já vimos encenado demasiadas vezes: promessas que se esfumam no exato instante em que se cruzam os umbrais do poder. Havia, diziam, um compromisso com a transparência, uma promessa de não tocar nos impostos — porque o povo, afinal, já carregava o fardo fiscal de muitas décadas. Mas bastou o eco da vitória eleitoral para que se revelasse outra partitura: aumento de impostos, recuos estratégicos e, pior ainda, uma inércia orçamental que congelou o país no exato momento em que mais precisava de movimento.

O Orçamento de Estado, essa bússola com que se deveria orientar o país, foi deixado à deriva. A justificação? A instabilidade, as circunstâncias, a conjuntura. Mas no fundo, o que se viu foi uma estranha resignação do poder perante a sua própria responsabilidade, como se governar fosse apenas uma performance de ocasião, e não um exercício contínuo de compromisso com o bem comum. E aqui, o verbo é mesmo “compromisso” — não o tipo de compromisso que se escreve nos cartazes de campanha, mas aquele que se mede em atos concretos, em decisões corajosas, em explicações dadas ao país com clareza e frontalidade.

Mas o episódio mais perturbador deste capítulo da nossa história política talvez seja o silêncio — esse silêncio pesado e cúmplice — em torno dos negócios privados do primeiro-ministro. O país acordou, atónito, para notícias que envolviam a sua empresa em matérias sensíveis ao próprio governo. A suspeita não era apenas a de conflito de interesses, mas a de uma promiscuidade entre o público e o privado que deveria envergonhar qualquer servidor da República. E, no entanto, em vez de explicações, tivemos evasivas. Em vez de prestação de contas, houve uma fuga para a frente, como se o eleitor fosse um espectador passivo de uma série medíocre, incapaz de distinguir realidade de ficção.

Ora, é precisamente aqui que se torna urgente falar do voto. Não como um ato rotineiro, mas como um gesto profundamente político e existencial. Votar é, em certo sentido, escrever um poema coletivo sobre o futuro. Um poema que se escreve com dor e esperança, com lucidez e também com desconfiança — mas escreve-se. Recusar esse gesto é ceder ao cinismo, essa doença moderna que nos convence de que nada muda, de que todos são iguais, de que o sistema está irremediavelmente corrompido. O problema é que o cinismo é cómodo, mas não construtivo. Como dizia Albert Camus:

o mal que está no mundo quase sempre vem da ignorância”.

Albert Camus

E nada alimenta mais a ignorância do que a indiferença.

Portugal não precisa apenas de eleições; precisa de consciência. Precisa de cidadãos que leiam os programas, que confrontem os candidatos, que recusem o populismo disfarçado de autenticidade e que não aceitem a tecnocracia como substituto da política. Precisamos de gente que vote com exigência, que saiba que a democracia não é um privilégio, mas uma responsabilidade que se exerce a cada quatro anos — e em todos os dias entre eles.

Sim, estas eleições foram precipitadas por um governo que falhoufalhou na palavra, falhou na gestão e, sobretudo, falhou na ética. Mas o que está em causa vai muito além deste governo. Está em causa o pacto social que nos une enquanto país. Votar não é apenas escolher quem nos vai governar; é escolher que tipo de sociedade queremos construir. Queremos uma democracia adormecida, que se limita a gerir expectativas, ou uma democracia viva, que se atreve a imaginar outros caminhos?

O descontentamento é legítimo, e talvez até necessário. É ele que nos impele a exigir mais, a não nos conformarmos com o poucochinho institucional. Mas que esse descontentamento não se transforme em abstenção, porque o vazio das urnas é sempre ocupado por aqueles que não hesitam em usar o poder para fins obscuros. O voto não é uma arma perfeita, mas é ainda a mais digna que temos — e cabe-nos usá-la com consciência, com coragem, e, porque não, com alguma raiva justa.

Há uma frase de Sophia de Mello Breyner que se impõe nestes dias: “porque o lugar onde estamos não é neutro”. O voto, tal como a poesia, recusa a neutralidade. É um ato de escolha, de posicionamento, de responsabilidade. Que estas eleições sirvam, ao menos, para lembrar que a democracia não morre de um golpe, mas de silêncio, de indiferença, de cansaço. E que, perante a mediocridade que nos querem vender como inevitável, saibamos responder com um gesto simples e radical: votar.

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