Num país onde se venera o mito da meritocracia e se saúda a democracia como um templo inviolável, a cada dia que passa, a cada ano que se soma à revolução de abril, a realidade revela-se mais sombria e intrincada. Portugal, apesar da aparência de um sistema plural e equitativo, esconde nas suas entranhas uma estrutura de poder que se implementou geração atrás de geração e que se reproduz com a elegância e a discrição de uma aristocracia contemporânea.
A teoria política ensina-nos que uma democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo. Mas o que acontece quando esse governo é capturado por um punhado de interesses empresariais, onde as decisões são tomadas não para o bem comum, mas para a perpetuação de um círculo restrito de influência e ganância? Portugal, um país formalmente democrático, vive uma realidade onde o poder se encontra dissimulado na teia da economia, da banca, da política e dos media.
A concentração económica em setores estratégicos como a distribuição alimentar, a energia, as comunicações e as infraestruturas rodoviárias dá a um pequeno grupo de empresas um poder desproporcional sobre a vida quotidiana dos cidadãos, e inflaciona a seu bel-prazer o custo de vida da população, sem consequências. A SONAE e a Jerónimo Martins controlam a alimentação e têm mão em seguros, energia e saúde. A GALP reina sobre os combustíveis, controlando o único pipeline português e cartelizando os valores dos combustíveis com os restantes distribuidores a operar em Portugal, com a Autoridade da Concorrência a assobiar para o lado, a EDP ilumina (ou apaga) as casas do país, enquanto a MEO, a NOS e a Vodafone estabelecem o preço a pagar pelo direito de comunicação, e cartelizam e monopolizam os valores que cobram aos clientes, numa ação também amplamente comprovada pela AdC, e também habilmente empurrada para debaixo do tapete do Fado, Futebol e Fátima. Não se trata apenas de monopólios de facto; trata-se da interligação entre estes grupos e os centros de decisão política, que convivem à mesma mesa, assente sobre os costados de todos os portugueses.
Os grandes grupos económicos compreenderam que a forma mais eficaz de perpetuar a sua influência sem despertar suspeitas é criar uma miragem de diversidade. Assim, empresas formalmente distintas são, na realidade, controladas pelos mesmos conglomerados, o que permite manter um monopólio disfarçado. Podemos observar o exemplo paradigmático que é a Águas de Portugal, que controla diretamente ou através de subsidiárias a gestão da água e dos resíduos de norte a sul do país. Embora o cidadão comum possa acreditar que existem diferentes entidades a concorrer na gestão dos recursos hídricos, a realidade é que o controlo está centralizado, garantindo uma influência inabalável no setor, onde está a concorrência, senhor reitor?
Esta estratégia estende-se a outras áreas. No setor das comunicações, a MEO, NOS e Vodafone parecem rivais ferozes, mas praticam preços e estratégias comerciais quase idênticas, sugerindo uma coordenação subtil que evita verdadeira concorrência. Insurgiram-se há pouco tempo, com o mesmo discurso negacionista, contra a entrada da empresa DIGI no mercado nacional, a praticar valores que fariam corar as pedras da calçada, comparando com a profundidade com que estes “operadores nacionais” entram nos bolsos dos seus clientes. No setor da distribuição alimentar, a diversificação de marcas sob um mesmo grupo empresarial mascara a realidade de um mercado altamente concentrado, onde as decisões essenciais são tomadas por um punhado de administradores.
E não ficamos por aqui.
Os escândalos financeiros e os resgates bancários ilustram a simbiose entre elites económicas e políticas. O caso BPN foi um retrato cru da forma como os erros de uma elite foram socializados, transformando o Estado num fiador involuntário (será que foi mesmo involuntário?) de um banco ruinoso. Os responsáveis, figuras bem conectadas com os corredores do poder, raramente enfrentaram a verdadeira justiça, enquanto o contribuinte arcava com as consequências.
O mesmo padrão repetiu-se com o colapso do Banco Espírito Santo (BES), com altos cargos políticos a garantirem que tudo estava bem com o banco – ninguém deverá esquecer as palavras do Sr. Presidente da República na altura dos acontecimentos, a falar aos microfones das televisões e a garantir que “tudo está bem com o BES” – e cujo desmoronamento revelou uma teia de ligações entre política, banca e grandes grupos económicos. A criação do Novo Banco como solução de emergência envolveu uma injeção massiva de fundos públicos, com custos transferidos para os contribuintes e perdas que penalizaram os pequenos investidores. Mais uma vez, os altos responsáveis conseguiram escapar incólumes, enquanto a população lidava com os efeitos de uma gestão imprudente e a manutenção de privilégios intocáveis.
Como acontece tudo isto? Basta sentar na beira da estrada e observar a circulação quase coreografada entre altos cargos políticos e administrações de grandes empresas e bancos. O fenómeno da “porta giratória” é notório: ex-ministros transformam-se em consultores de empresas a que anteriormente regulavam, enquanto antigos gestores de multinacionais são convocados para cargos governamentais. Tudo isto acontece à vista de toda a gente, mas curiosamente parece ser assunto tabu para os noticiários. Isto porque controlar a narrativa é essencial para manter uma estrutura oligárquica. E a maioria dos grandes media portugueses está nas mãos de um pequeno grupo de investidores, muitos deles com interesses cruzados nos setores que noticiam. A lógica é simples: aquilo que não se discute, não existe. Quase como dizer que se não está na internet, não aconteceu… E realmente não se discute: as questões como a cartelização dos preços dos combustíveis, a manipulação dos custos da energia e das comunicações ou os esquemas de financiamento partidário aparecem nos jornais como casos isolados, quase que direcionados a objetivos específicos, mas nunca como sintomas de um sistema viciado.
George Orwell, no seu livro 1984, alertava para os perigos de um poder invisível que controla sem ser percebido. Portugal pode não ser distopia totalitária, mas a sua oligarquia económica opera sob princípios semelhantes: molda a realidade sem necessidade de repressão ostensiva. A liberdade de voto existe, mas as opções reais são um logro e frequentemente limitadas a figuras que são peças do mesmo jogo.
A pergunta final não é se Portugal é uma oligarquia, mas até que ponto estamos dispostos a continuar a ignorá-lo. Uma sociedade que aceita passivamente a concentração do poder económico, que normaliza a promiscuidade entre política e negócios e que permite que as decisões fundamentais sejam tomadas por um grupo restrito de indivíduos não é uma democracia robusta. A consciência é o primeiro passo para a mudança. Como diria Fernando Pessoa, “navegar é preciso” — mas antes, é essencial saber quem segura o leme.