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A Caridade do Like

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A praga dos algoritmos leva-me muitas vezes a assistir a pequenos vídeos de caridade alheia. Vejo-os sempre com um misto de desconforto e alento. O alento é inalienável da minha fé na humanidade e na capacidade das pessoas se elevarem face à necessidade. Mas o desconforto consegue sempre levar a melhor. Pois embora a cada vídeo que nos passa pela frente, possamos pensar estar a assistir à restauração da fé na humanidade, estamos na realidade a assistir a um cru e desumanizado ato egoísta de autopromoção, com o simples objetivo de obter validação alheia.

Vivemos tempos onde a solidariedade, esse gesto humano de ligação com o outro, cada vez mais se transforma em moeda de troca por visibilidade.

Chamo-lhe Likedade (lê-se “Láiquidáde”)

É o fenómeno crescente de ajudar, não pelo outro, mas sim pela audiência.

Hoje, o altruísmo genuíno, aquele que exala empatia, corre o risco de ser engolido por um comportamento vazio, devidamente embrulhadinho em filtros e hashtags. Vemos, nas redes sociais, gestos que deveriam ser discretos, privados, transformados em atos públicos, amplamente divulgados, carregados de legendas emocionantes e imagens cuidadosamente editadas.

O ato de ajudar, deixou de ser um ato de humanidade para ser um meio para atingir um fim. E esse fim é invariavelmente obter likes, comentários e aplausos digitais, mesmo sendo estes de outros bits e bytes cuidadosamente alimentados pelo algoritmo e potenciadores do crescimento deste fenómeno. Onde para a empatia? Onde para o “põe-te no lugar do outro”?

O custo desta exposição é demasiado alto. No ato de ajudar, a figura central deve ser quem recebe a ajuda, não quem a oferece. O foco deve estar na história de quem estamos a ajudar. Precisamente para que o nosso ato inspire empatia, humanidade, vontade real em ajudar o outro. Mesmo no anonimato fora do ecrã!

 No entanto, as redes sociais inverteram esta lógica, e o beneficiário tornou-se num figurante para um espetáculo onde quem dá a esmola, o carrinho de compras ou o cobertor, rouba os holofotes.

Mas ainda piora!

Na maioria das vezes, estas pessoas são expostas em situações de fragilidade extrema, apanhadas de surpresa no carrossel da narrativa, sem consentimento ou dignidade preservada, apenas para sustentar um ato de bondade alheia.

Há algo profundamente desumanizador nesta prática. Transformar a necessidade do outro num palco, fere aquilo que deveria ser o foco da solidariedade: o respeito. Em vez de ajudar pelo impacto que a ação terá na vida alheia, ajuda-se pelo impacto que terá na própria imagem. É a vaidade vestida de compaixão, uma generosidade que não é nada além de egoísmo e egocentrismo mascarado.

E, neste teatro digital, as redes sociais desempenham o papel de realizador. É nelas que a “likedade” encontra um terreno fértil para crescer. O algoritmo – essa entidade invisível que recompensa e agarra o que emociona – amplifica maquinalmente estes gestos que tocam o coração das massas. E como máquinas que são, desprovidas de emoção, fazem-no sem empatia, às custas do desconforto ou até mesmo da humilhação de quem é ajudado. Likes e visualizações tornam-se mais valiosos do que a mudança efetiva na vida de alguém.

E o impacto real?

O impacto real é quase sempre pífio.

A Likedade é, por definição, superficial. Um prato de comida oferecido na rua, filmado e publicado com uma banda sonora emocionante, não resolve a fome sistémica. Um carrinho de compras entregue com um sorriso para a câmara não muda a estrutura de desigualdade. O problema é que, neste ciclo, o gesto pontual vale mais do que a solução contínua, porque o último exige esforço, dedicação e, acima de tudo, anonimato – e estas coisas não rendem likes. Não alimentam o ego.

O que fazer, então? Desistir de divulgar a solidariedade?

Não necessariamente.

Há formas de usar o alcance das redes sociais para promover ações significativas sem cair na armadilha da ostentação. É uma questão de intenção. Ajudar para inspirar outras pessoas a ajudar é válido, mas ajudar para exibir-se é um caminho vazio. A diferença está na abordagem: o foco precisa estar na causa, nunca no indivíduo.

A caridade não precisa de holofotes. A sua força está na simplicidade, na capacidade de transformar sem fazer aparato. Grandes gestos não precisam de palco; pequenos gestos, feitos de coração, são capazes de mudar mundos. Se quisermos resgatar o verdadeiro sentido do altruísmo, precisamos lembrar-nos de que o maior impacto de uma boa ação muitas vezes é aquele que ninguém vê.

O escritor, e Prémio Nobel da Paz, Albert Schweitzer, disse uma vez que “o verdadeiro valor de uma pessoa não está no que ela faz em público, mas no que faz em silêncio“. Talvez esteja na hora de interiorizar esta lição. Afinal, o ato de ajudar não é sobre nós – e nunca deveria ser.

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