
Há temas que não desaparecem apenas porque decidimos evitá-los. Eles ficam ali, visíveis, pesados, a ocupar espaço, como um elefante no meio da sala. A degradação dos serviços e edifícios públicos é um deles. Toda a gente a vê. Poucos querem assumir de onde vem.
Sempre que um responsável político sugere, mesmo que de forma indireta ou mal disfarçada, que a deterioração acompanha o uso por pessoas de menores rendimentos, não está apenas a tropeçar nas palavras. Está a tocar num nervo antigo. O de uma visão do Estado onde o problema nunca é a decisão, o orçamento ou a estratégia. O problema são sempre os outros. Os que usam. Os que dependem. Os que não têm alternativa.
É um raciocínio cómodo. Quase elegante na sua crueldade. Se o serviço está pior, não é porque se investiu menos, porque se adiou a manutenção, porque se geriu mal ou porque se escolheu não priorizar. É porque há demasiada gente a precisar dele. Gente a mais. Gente que pesa.
Mas os factos teimam em contrariar esta narrativa. Os serviços públicos que continuam a ser usados transversalmente, por várias classes sociais, tendem a manter padrões mais elevados. Não por magia. Não por civismo superior. Mas porque há exigência, reclamação, pressão política. Quando algo falha, faz barulho. Quando incomoda, não é tolerado.
O inverso também é verdadeiro. Quando um serviço passa a ser maioritariamente usado por quem tem menos tempo, menos voz e menos margem para contestar, a fasquia desce.
Lentamente.
Primeiro normaliza-se a precariedade.
Depois aceita-se a demora.
Mais tarde, justifica-se a degradação.
Não é inevitável. É uma sequência de escolhas.
Aqui entra a matriz ideológica que atravessa grande parte da direita portuguesa, com o PSD como herdeiro fiel. Nunca houve uma crença profunda em serviços públicos fortes, universais e exigentes. Houve tolerância. Houve gestão mínima. Houve a ideia persistente de que o público serve para desenrascar quem não pode pagar melhor. E que isso, por si só, já é suficiente.
O método repete-se. Deixa-se degradar em silêncio. Aponta-se depois a ineficiência. Conclui-se, com ar pragmático, que o Estado não funciona. E apresenta-se o privado como solução natural, quase moral. Não é um acidente. É um percurso.
O mais inquietante não está no discurso explícito. Está naquilo que se vai aceitando sem discussão. A ideia de que quem depende dos serviços públicos deve ser menos exigente. Que reclamar é ingratidão. Que apontar falhas é politizar. Que pedir qualidade é não compreender as “limitações”.
A pergunta a fazer não é quem estraga, é quem decide até onde é suficiente. Quem aceita níveis de serviço que nunca aceitaria para si. Quem transforma direitos em favores e depois pede silêncio em troca.
Este tema incomoda porque obriga a olhar para cima. Obriga a questionar escolhas. Obriga a perceber que a degradação não cai do céu nem nasce do uso. A degradação é construída, dia após dia, com decisões muito concretas e cirúrgicas. E com uma grande vontade coletiva de fingir que não a vemos.

